Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me ponta traições de alma a um caráter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que naõ esta em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.”
[F.P. em Gênese e Jusitificação da Heteronímia a respeito da Consciência da Pluralidade]
Nesta descrição do seu método criativo da heteronímia, fenômeno literário em que coloca em cena “outra personalidade" para a obra, Pessoa nos diz "que o autor humano destes livros não conhece em si próprio personalidade nenhuma."
A heteronímia aponta para o paralelo do procedimento do processo analítico onde pode aparecer o esboço de um confronto existencial revestido de outras muitas roupagens. É o espaço onde nos perguntamos afinal quem somos. Esta questão nem sempre conduz necessariamente a um processo de dissociação da personalidade ou despersonalização.
No caso , os heterônimos eram para Pessoa seus filhos mentais: “quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente diferente do que ele é, embora parecido; filho mental, talvez, e com qualidades herdadas, mas as diferenças de ser outrem.”
Não lhe causava estranheza esta qualidade de dissociação, diz "de nada lhe serviria concordar ou contestá-la, de nada lhe serviria, nos diz, escravo como era da multiplicidade de si próprio.
Afirmar que estes homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma incorporadamente, não existem – não pode fazê-lo autor destes livros; porque não sabe o que é existir, nem qual, Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade.”
A dimensão estética da heteronímia da obra de Pessoa nos faz pensar para a diferença entre uma clínica que pode ser pensada como 'a clínica do recalque', essencialmente neurótica e 'a clinica da dissociação' onde insere-se quadros como "personalidade falso self"ou como alguns autores preferem chamá-los de " personalidade como se fosse" e boderlines, por exemplo.
Segundo uma visão de clínica winnicottiana * a ação mais importante do tratamento psicanalítico é aquela exercida junto aos pacientes psiconeuróticos, a tônica da análise seria trazer para a consciência aquilo que estava inconsciente, assim o desejo de conhecer a si próprio parece ser uma das características do psiconeurótico, trazendo maior tolerância para aquilo que ele desconhece. Os pacientes da clínica dissociativa, os pacientes psicóticos ou pessoas normais que têm funcionamento psicótico, ao contrário, dispensam ganhar consciência, preferindo viver suas experiências místicas e viver os seus sentimentos.
No relacionamento entre o paciente psiconeurótico e o analista se faz presente aquilo que denominamos de "neurose de transferência" o que nada mais é que a repeitção dos conflitos infantis do analisando na figura do seu analista. Este fenômeno é a "neurose de transferência".
Este fenômeno não ocorre naturalmente num processo transferencial com pacientes regressivos e caso se instale artificialmente, a interpretação que também pressupõe o conceito de repetição infantil pode provocar o que Winnicott chamava de doutrinação ou produzir submissão uma vez que o paciente não amadureceu seu material o suficiente para que o conteúdo interpretado faça algúm sentido para ele. Freud em seu texto sobre o método psicanalítico já nos alertava sobre a especificidade do dispositvo clínico psicanalitico para tratamento das psiconeuroses.
Os heterónimos em Pessoa seriam os aspectos dissociados de sua personalidade: “Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que naõ esta em nenhuma e está em todas.”
Explícitamente em 1932, escreve em Autopsicografia “a origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação”
Christhopher Bollas no livro Being a charater: psychoanalysis and self experiences (1992), escreve:
" um individuo pode, entretanto, lutar contra constelações interiores traumáticas e, por transformações do trauma em obras de arte, alcançar certo domínio sobre os efeitos do trauma. A visão de que o artista transforma o trauma e o sofrimento psíquico em um objeto artístico é uma perspectiva comum sobre a natureza da criatividade ... E um indivíduo pode, na realidade, trabalhar um trauma para transformar seu status psíquico em desenvolvimento, a partir dele, uma estrutura psíquica nova que marca uma nova perspectiva. Assim, ' a genera ' pode e realmente emerge do jogo lúdico dedicado à transformação do sofrimento psíquico e perspectivas traumáticas".
As Duas Fridas (1939) |
Tudo indica que atráves da criatividade e do fenômeno da heteronímia, Fernando Pessoa tornou mais suportável lidar com a desintegração do seu eu, chamados por eles como espelhos fantásticos, assim como também nessa mesma linha de pensamento encontramos nas pinturas de Frida Kahlo (1907-1954) e em particular nos seus auto-retratos e retratos um esforço em dar sentido a sua vida a um self fragmentado e desintegrado. Assim também na criatividade aplica-se a noção de uma pulsão que nos leva a criar objetos artísticos, que nos ajudam a suportar a realidade de cada dia. Frida Kahlo sempre declarou que apesar de ter tida como uma pintora surrealista, dizia que tal denominação era incorreta, dizia, nunca ter pintado sonhos mas ao contrário, a sua realidade.
"Pouco depois de se divorciar de Diego Rivera, Frida Kahlo terminou um auto-retrato composto por duas personalidades diferentes. Neste quadro, ela trata as emoções envolvidas na separação e na crise matrimonial. A parte de si que era respeitada e amada por Diego Rivera é a Frida mexicana, com roupas tehumana, enquanto que a outra Frida tem um vestido mais europeu. Os corações das duas mulheres estão expostos e ligados um ao outro apenas por uma artéria. A parte rejeitada europeia de Frida Kahlo corre o perigo de se esvair em sangue até a morte".
Enquanto que o movimento criativo em Pessoa parece apontar para fora e o movimento criativo em Frida Kahlo parece apontar para o seu sentido oposto, infere-se que para ambos a criatividade aparece como salva-vidas. Neste particular, é sabido que alguns artistas mostram receio de perder a sua capacidade criativa num processo analítico. Em todo caso, os conflitos psiquicos parecem estar tão intimamente emaranhados às criações que se afigura um risco resolvê-los sem prejudicar a obra de arte. O prejuízo estaria, no nosso entender, na inibição do processo criativo, nesse caso, um convite para análise pessoal seria bem-vindo.
Referências Bibliográficas:
Fernando Pessoa. Obras em Prosa. Organização, Introdução e Notas de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, S.A. 1998.
Kettenmann, Andrea. Frida Kahlo (1907-1954). Dor e Paixão. Benedikt Taschen. 1994.
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