Este blog dedica-se a exercitar "escuta" sensível às manifestações artísticas, criações e ilusões humanas.

sábado, 22 de maio de 2010

Na madrugada um papo com o duplos

No breve auto-retrato, exposto a continuação, Borges nos faz pensar no processo da duplicação  na escrita do  seu "eu" . Entendemos que  esta operação "do duplicar"  atende a uma das pirncipais características do inconsciente,  se oculta e se mostra ao mesmo tempo e, é essencialmente polissêmico.

Borges e Eu

"Ao outro, a Borges, é  a quem sucedem as coisas.  Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um saguão e a porta envidraçada; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agrada-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII,  as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, deixo-me viver, para que Borges possa tramar sua lilteratura a essa literatura me justifiica. Nada me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não é de ninguém, nem sequer do outro, senão da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me, definitivamente, e apenas algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco lhe vão cedendo tudo, se bem que me conste seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perserverar em seu ser;  a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu hei de permanecer em Borges, não em mim (se é que sou alguém), porém me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros ou do que no laborioso zangarreio de uma guitarra. Faz  anos tratei de livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos são agora de Borges e terei de idear outras coisas. Assim minha vida é uma fuga, e tudo perco, e tudo é do esquecimento, ou do outro.  Não sei qual dos dois escreve esta página".   


Vemos um Borges conversando com um outro que é ele próprio. Este movimento tem o sentido de colocar-se como referência a fim de promover uma espécie de auto-conhecimento. Falar da  literatura borgeriana é  falar de metafóras por meio delas instala-se um jogo dialético, tal como vemos em muitos de seus poemas e obra : Poema dos Dons" , O Relógio de Areia" , "Os Espelhos". O primeiro verso do poema  os espelhos  é paradigmático para entender como no processo terapêutico aparecem "na forma sem forma"  a  angústia e  estados de ser temerários das verdades veladas, transcrevo extraídos do poema:


"Eu que senti o medo dos espelhos
Não só frente ao cristal impenetrável
Onde acaba  e começa, inabitável,
Um espaço impossível de reflexos, [...].  

A  impossibilidade aparece sob vários  aspectos dentro de  cada uma das  molduras  imaginárias ou  reais que aparecem nas falas de nossos analisandos :

" O cristal nos espreita. Se entre as quatro 
Paredes do aposento há um espelho, 
Nâo estou só. Há outro. Há o reflexo
Que erege na alba um sigiloso teatro". 

Em outros textos de Borges aparece de forma menos fantástica  a sua relação com o duplo  entretanto importa neste espaço atentar para a função do " duplo"  na singularidade de cada ser no sentido de propiciar um exercício de auto-conhecimento referenciado na dimensão simbólica do duplo  na obra de Borges.

É um exercício imaginativo que promove uma desconstrução e construção na medida em que desorienta o pensamento lógico  para instaurar uma outra ponte, em outro registro  e/ou outra posição subjetiva, que desvela através da tradução algo da ordem do estanque, o entrave.  Deste  modo, a ponte configurar-se-ia como um caminho  tradutivo para  o desvelamento de enigmas pessoais.

A arte tem a vantagem de recorrer à fiçcão, tudo é permitido,  pressupõe-se que não  se tem o mesmo rigor com os seres imáginários que se tem com os seres reais, a arte  deste século parece estar mobilizada pela intenção de abreviar a distância entre  a cena e o espectador. Assim, como conduzir os nossos duplos?  Uma possibilidade é cogitar um ser renovado que cultivaria um estado de ser mais esclarecido, lúcido,  apto para o jogo dialético do seu ser. Poéticamente  Borges  anunciaria, em Espelhos, esta eventualidade:

Eu, que senti o medo dos espelhos
Não é frente ao cristal impenetrável 
Onde acaba e começa, inabitável, 
Um espaço impossível de reflexos. 

Mas frente à àgua especular que imita 
O outro azul em seu profundo céu 
Que risca às vezes o ilusório vôo 
Da ave inversa ou que um tremor agita

E frente à superficie silenciosa
Do ébano sutil cuja pureza 
Repete como um sonho toda a alvura 
De vago mármore ou de vaga rosa, 

Hoje, ao cabo de tantos e perplexos 
Anos de errar sob a mudável lua, 
Me pergunto  que acaso da fortuna 
Fez que eu temor sentisse  dos espelhos. 

Espelhos de metal, emascarado
Espelho de caoba que, na bruma 
De eu rubro crepúsculo, esfuma 
Esse rosto que mira e que é mirado. 

Infinitos os vejo, elementais
Executores de um antigo pacto. 
Multiplicar o mundo como o ato
Generativo, insone e fatais.

Prolongam este vão e incerto mundo 
Em sua tão veloz teia de aranha:
à tarde muitas vezes os empana
o hálito de um homem morimbundo. 

O cristal nos espreita. Se entre as quatro 
Paredes do aposento há um espelho. 
Não estou só. Há outro. Há o reflexo 
Que erege na alba um sigiloso teatro. 

Tudo acontece e nada se recorda 
Naqueles gabinetes cristalinos 
Onde, como fantásticos rabinos, 
Lemos os livros da direita à esquerda. 

Claudio, rei de uma tarde, rei sonhado, 
Não sentiu que era um sonho até o dia 
Em que um ator mimou-lhe a felonia 
Com arte silenciosa, num tablado. 

Que haja sonhos é raro, que haja espelhos,
Que o costumeiro e gasto repertório 
De cada dia inclua o ilusório
Orbe profundo que urdem os reflexos. 

Deus (pus-me a imaginar) põe um empenho
Em toda essa irreal arquitetura. 
A qual constrói a luz com a polidura
Do vidro e faz a sombra com o sonho 

Deus inventou as noites que se armam
De sonhos e as imagens dos espelhos
Para que o homem sinta que é reflexo
E vaidade. Por isso nos alarmam.

Borges, Jorge Luis. O Fazedor; tradução de Rolando Roque da Silva - 5 ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.