Este blog dedica-se a exercitar "escuta" sensível às manifestações artísticas, criações e ilusões humanas.

domingo, 1 de julho de 2012

" O Cárcere e a Rua"



O documentário “O Cárcere a a Rua” (2004), dirigido por Liliana Sulzbach, mostra o choque da soltura de três entrevistadas da penitenciaria feminina Madre Pelletier,cuja rotina é perfilada desde o momento que ingressam no sistema carcerário, à transação ao regime semiaberto e à liberdade. Com sensibilidade a diretora retrata a experiência de três realidades e subjetividades diferentes: a da Cláudia, a da Daniela e a da Betânia, conseguindo aprofundar com leveza, não sem densidade, a psicologia do feminino num cotidiano dominado pela solidão e pelas perdas.
O primeiro retrato é o da veterana Cláudia, negra de 54 anos de idade, acompanhada a meio metro pela câmera numa área comercial. Desacostumada com o entorno, porque passou boa parte de sua existência cumprindo pena por latrocínio –assalto seguido de morte-, compra uma tintura para o cabelo e pergunta onde fica o ponto final de uma linha de ônibus, ninguém lhe fornece uma informação precisa. Diante de um rapaz que lhe indica o ponto, surpreso com a equipe de filmagem, ela explica : “ é que estou saindo da prisão”.

Em oposição ao caso de Cláudia, aparece o da menina Daniela, réu primária, presa por infanticídio -tentativa de matar o próprio filho-,o que Daniela, grávida, nega. Ela fica transtornada em poucas semanas quando percebe que ficará por muito tempo reclusa. Não fosse o acolhimento e a proteção de Cláudia, certamente se machucaria nas mãos das internas que não toleram esse tipo de crime.

Entre esse dois lados está Betânea, presa por assalto, que, passados três anos em regime fechado, também tem direito ao semiaberto depois de cumprir um sexto da pena. Mais instável e jovem que Cláudia, ela não se acostuma com o alojamento reservado fora do presídio. Sai e decide certa noite, não retornar. Foragida e apesar do medo da polícia, pretende não voltar.
Unindo as realidades destas mulheres, a diretora revela uma característica peculiar dos presídios femininos: o abandono. Ao ir para a cadeia a mulher é separada dos filhos, abandonada pelo homem. Até familiares próximos se afastam. A mãe visita o filho durante anos; a filha presa não merece a mesma consideração. A exceção, porém, é captada no documentário: um marido aparece todas as noites diante da porta da penitenciária para gritar em altos brados seu amor por sua mulher.

O assunto a ser discorrido nesta resenha refere-se à dificuldade das detentas de lidar com a realidade externa à instituição . O motivo da escolha deste tema é uma tentativa de suscitar questões referentes ao controle que se exerce sobre as detentas, e em que medida esse controle favorece uma estruturação e uma aposta efetiva para a ressocialização.

Cláudia nos fala que é impossível dar conta do estado de encarceramento sem estar medicamentada, o que se evidencia na sua fala alinha-se ao pensamento de Foucault de que o encarceramento nunca se confunde apenas com a simples privação de libertade. Em “Vigiar e Punir”, Foucault coloca que o que está em jogo é de duplo fundamento: jurídico-econômico por um lado, técnico-disciplina por outro. Esse duplo funcionamento faz com que as prisões sejam antes instituições com a função técnica corretiva de transformação do indivíduo do que instituições de detenções, ou seja, de privação de liberdade. Aqui, a medicamentalização adquire uma conotação de elemento de desconstrução da subjetividade e assume uma função ortopédica, isto é, a de predispor uma estruturação fictícia ou alienante para que, a partir dela, possa estar num estado de sobrevida na realidade carcerária.

Ainda na esteira de Foucault, como pensar o processo de ressocialização nos estabelecimentos prisionais se o corpo adquire uma realidade biopolítica, e a medicina a sua estratégia? Como inserimos esta questão nessa população específica, com o recorte de gênero?

Dráuzio Varella, em depoimentos e estudos registrados na penitenciária de Santana, salienta que o estabelecimento da hierarquia, -entre os homens, em razão da restrição do espaço físico-, obedece a uma linearidade que não se processa no caso das mulheres. Segundo ele, entre aqueles ficam mais claras as relações de domínio e submissão, a estrutura das coalizões e da organização dos grupos na disputa pelo poder. Nelas, as relações são mais complexas porque operam em rede. Apesar de muitas vezes dar a impressão contrária, a mulher é sobretudo contestadora e avessa à submissão hierárquica. Nesse sentido, faz-se necessário ter um olhar diferenciado - um recorte de gênero- para essas mulheres porque o que se observa no seu cotidiano é a solidão. Ainda segundo Varella, ao ir para a cadeia a mulher é separada dos filhos, abandonada pela família e raramente recebe visitas familiares. Este universo faz com que os efeitos do encarceramento na mulher sejam, na sua maioria, um convite para o abuso de psicotrópicos ou drogas ilegais e a prática de relacionamentos homossexuais com o intuito de amenizar tal condição.


Em “Direitos Humanos e Mulheres Encarceradas”, Howard (2006) chama a atenção para essa realidade: de acordo com o Censo Penitenciário de 2002 65% dos presos recebem visitas das companheiras, enquanto isso, 18% das presas recebem visitas dos companheiros. Assim como os homens, a maioria das presas tem direito à visita íntima, só que a maioria foi abandonada pelos companheiros.

Como salienta Bleger (1984), as instituições, sujeitas às leis sociais e econômicas, são espaços em que o homem deposita parte de sua personalidade, reagindo conforme a imagem da instituição que prefigura. Até no caso dos presídios, elas podem ser fonte de identificação, de sensação de pertinência. Este aspecto de “pertinência” é posto em cena no documentário quando as detentas referem-se à cela como moradia, quando a veterana Cláudia, incapaz de se adaptar à realidade externa, pede para retornar como voluntária no presídio. Na visão blegeriana, quando muito enrijecidas as instituições em suas defesas, serviriam mais à preservação da “ doença” do que à sua superação. A prisão é uma instituição paradigmática da vigilância, do controle e da correção que reproduz, na sua ineficácia , seus próprios marginais, e, na sua eficácia, uma socialização do corpo que na lógica da biopolítica de Foucault, reproduz uma docilização e adestramento do ser.

Em “ Prisões e Políticas Carcerária” (org), Fiona Macaulay analisa a questão carcerária considerada contemporaneamente um dos grandes dilemas do Estado democrático de direito em garantir justiça e segurança. Chama a atenção para um ponto que nos interessa: segundo ela, poucos defenderiam que o sistema prisional brasileiro é bem-sucedido em sua meta de reabilitação, um sistema que é inofensivo em atingir seus objetivos não pode ser eficiente.

No Brasil temos um outro modelo que é pouco conhecido e inovador, que são os (CR): conhecidos como Centros de Ressocialização administrados em uma parceria entre autoridades responsáveis pela administração penitenciária e organizações não-governamentais locais. A Secretaria da Administração Penitenciária alega que custam metade do preço por preso do que uma prisão estadual. Além disso, há também, segundo Fiona, o fornecimento de regime e metodologia de reabilitação que afirmam produzir taxas de reincidências muito mais baixas.

A outra estratégia é a aplicação de penas alternativas; criminosos primários condenados por crimes intencionais sem violência ou grave ameaça –pelo que poderiam ser sentenciados a até quatro anos de prisão- podem ser beneficiários às medidas aplicadas pelas Varas de Execuções Criminais (DECRIM) ou Juizados Especiais Criminais (JECRIM).

Estas estratégias apontam para menores taxas de reincidências e faz dos CR e estratégias similares tanto efetivos quanto eficientes, além de evitarem os efeitos nocivos do encarceramento pois apostam em metodologias de ressocialização.

Karein Castro Reglero. Psicóloga clínica, e institucional na  CPMA-Mulher, Coordenadoria de Reintegração Social (SAP).  

Referencias Bibliográficas:

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: tradução de Raquel Ramalhere. 39 ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

HOWARD, C. (org.) Direitos Humanos e mulheres encarceradas. São Paulo: Instituto Terra, Trabalho e Cidadania; Pastoral Carcerária do Estado de São Paulo, 2006.

MACAULAY, F. Prisões e política carcerária. In LIMA, R.S e DE PAULA, L. (org.) Segurança pública e violência: o Estado esá cumpriindo seu papel? 1. ed., São Paulo : Contexto, 2008.

OCIMARA, B. Veja depoimentos exclusivos de mulheres presas na Penitenciária de Santana. In Revista São Paulo, Folha de São Paulo, 19 de julho de 2010. Disponível em : http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/767912-veja-depoimentos-exclusivos-de-mulheres-presas-na-penitenciaria-de-santana.shtml . Acesso em : 01 de julho de 2012.