Este blog dedica-se a exercitar "escuta" sensível às manifestações artísticas, criações e ilusões humanas.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A doce amarga sensibiidade em Cortázar

A partir da década de 1950, Cortázar tornou-se um dos escritores latino-americanos mais conhecidos, escreveu em quase todos os gêneros literários, além de escritor e ensaísta também participou  ativamente como militante político. Desta militância destaca-se alguns livros como Nicarágua tão violentamente doce e Argentina: anos de alambradas culturales.  Porém  é nos contos que Júlio Cortázar se consagra como um dos maiores escritores do mundo. 

Jaime Alazraki * cunhou o termo  de "neofantástico" para referir-se a diversos contos de alguns autores como Cortázar entre outros escritores latino-americanos, termo aliás que o Cortázar referia-se nos seus ensaios sobre crítica literária. 

Alazraki levanta conclusivos para este termo e no que se refere a carpintaria composicional em Cortázar assim entendemos haver elementos que corroboram a distinção do fantástico todoroviano e do neofantástico: a realidade e a fantasia mantém planos equivalentes de verosimilhança, a simplicidade dos enredos mostra que a fantasia é pautada pelo cotidiano realista e a enunciação em primeira pessoa favorece ambiguidades e subjetividades.  Estes aspectos são observáveis em alguns contos de Cortázar, revelando-se com destaque em  o "Bestiário", em "Octaedro"  e "Em los Reyes".  

Ainda em o Escorpião Encalacrado, Arrigucci Jr., o autor pretende penetrar no mundo labiríntico da construção da obra em Cortázar partindo do pressuposto que a obra analisada desafia a tarefa  uma vez que a sua narrativa parece exigir uma metalinguagem de segundo grau porque a obra cortaziana tem a sua própria crítica, mas ressalta que tampouco pode-se consider-a´la de forma simplista, como uma crítica apenas colada à narrativa.  O jazz, assim como o boxe e o jogo ocupa um lugar importante para a compreensão da poética de Cortázar. Para ele, o jazz é a própria linguagem da invenção.



Aí, mas onde, como in Octaedro 



Um quadro de René Magritte representa um caminho que ocupa o centro da tela. Ao pé da pintura o título: Isto não é um cachimbo.


A Paco, que gostava de meus relatos. (Dedicatória de Bestiário, 1951)

não depende da vontade.


é ele subitamente: agora (antes de começar a escrever; a razão de ter começado a escrever) ou ontem, amanhã, não há nenhuma indicação prévia, ele está ou não está; nem posso dizer que vem, não existe chegada nem partida; ele é como um simples presente que se manifesta ou não neste presente sujo, cheio de ecos de passado e obrigações de futuro


A você que me lê, não lhe terá acontecido aquilo que começa num sonho e volta em muitos sonhos mas não é isso, não é somente um sonho? Alguma coisa que está aí, mas onde, como; alguma coisa que acontece sonhando, é claro, simples sonho mas depois também aí, de outra maneira porque mole e cheio de buracos mas aí enquanto você escova os dentes, no fundo da pia você continua a vê-lo enquanto cospe a pasta de dentes ou enfia a cara na água fria, e já enfraquecendo mas preso ainda ao pijama, à raiz da língua enquanto esquenta o café, aí, mas onde, como, grudado à manhã, com seu silêncio em que já entram os ruídos do dia, o noticiário do rádio que ligamos porque estamos acordados e levantados e o mundo continua andando. Porra, porra, como pode ser, que é isso que foi, que fomos num sonho mas é outra coisa, volta de quando em quando e está aí, mas onde, como, está aí e onde é aí? Por que outra vez Paco esta noite, agora que escrevo neste mesmo quarto, ao lado desta mesma cama onde os lençóis marcam o oco de meu corpo? A você não acontece como a mim com alguém que morreu há trinta anos, que enterramos num meio-dia de sol na Chacarita, levando nos ombros o caixão com os amigos da turma, com os irmãos de Paco?


seu rosto pequeno e pálido, seu corpo apertado de jogador de pelota basca, seus olhos de água, seu cabelo louro penteado com gomalina, a risca do lado, seu terno cinza, seus mocassins pretos, quase sempre uma gravata azul mas às vezes de manga de camisa ou com um roupão de toalha branco (quando me espera em seu quarto da calle Rivadavia, levantando-se com esforço para que eu não perceba que está tão doente, sentando-se na beira da cama embrulhado no roupão branco, pedindo-me um cigarro que lhe proibiram)


Já sei que não se pode escrever isto que estou escrevendo, na certa é outra das maneiras do dia para acabar com as débeis operações do sonho; agora irei trabalhar, me encontrarei com tradutores e revisores na conferência de Genebra onde estou por quatro semanas, lerei as notícias do Chile, esse outro pesadelo que nenhuma pasta de dentes desgruda da boca; por que então pular da cama à máquina, da casa da calle Rivadavia em Buenos Aires, onde acabo de estar com Paco, a esta máquina que não servirá de nada agora que estou acordado e sei que passaram trinta e um anos desde aquela manhã de outubro, aquele nicho num columbário, as pobres flores que quase ninguém levou porque raios se nos importávamos com as flores enquanto enterrávamos Paco.


Eu digo a você, estes trinta e um anos não são o que interessa, muito pior é esta passagem do sonho às palavras, o abismo entre o que ainda continua aqui mas se vai entregando cada vez mais aos gumes nítidos das coisas deste lado, ao corte das palavras que continuo escrevendo e que já não são aquilo que continua aí, mas onde, como. E se continuo é porque não posso mais, tantas vezes soube que Paco está vivo ou que vai morrer, que está vivo de outra maneira fora da nossa maneira de estar vivos ou de morrermos, que escrevendo ao menos luto contra o inatingível, passo os dedos das palavras pelos vãos desta trama finíssima que ainda me atava ao banheiro, à torradeira, ao primeiro cigarro, que ainda está aí, mas onde, como; repetir, reiterar, fórmulas de encantamento, claro, talvez você que está me lendo também trata às vezes de fixar com alguma salmodia o que vai indo embora, repete estupidamente uma poesia infantil, aranhazinha vizinha, aranhazinha vizinha, fechando os olhos para centrar a cena capital do sonho esfiapado, renunciando aranhazinha, dando de ombros vizinha, o jornaleiro bate à porta, sua mulher olha para você sorrindo e diz Pedrito, ficaram as teias de aranha em seus olhos e tem tanta razão você pensa, aranhazinha vizinha, claro que as teias de aranha.


quando sonho com Alfredo, com outros mortos, pode ser qualquer de suas tantas imagens, das opções do tempo e da vida; vejo Alfredo dirigindo seu Ford preto, jogando pôquer, casando com Zulema, saindo comigo da escola Mariano Acosta para ir tomar um vermute em La Veria do Once; depois, no fim, antes, qualquer dos dias ao longo de qualquer dos anos, mas Paco não, Paco é somente o quarto nu e frio de sua casa, a cama de ferro, o roupão de toalha branco, e se nos encontramos no café e ele está com seu terno cinza e gravata azul, a cara é a mesma, a terrosa máscara final, os silêncio de um cansaço insoldável.

 Não vou perder mais tempo; se escrevo é porque sei, embora não possa explicar-me o que é isso que sei e mal consiga separar o mais grosso, pôr os sonhos de um lado e Paco do outro, mas é preciso fazê-lo se um dia, se agora mesmo em qualquer momento consigo chegar mais longe. Sei que sonho com Paco dado que a lógica, dado que os mortos não andam pela rua e existe um oceano de água e de tempo entre este hotel de Genebra e sua casa da calle Rivadavia, entre sua casa da calle Rivadavia e ele morto há trinta e um anos. Então é óbvio que Paco está vivo (de que inútil, terrível maneira terei de dizê-lo também para me aproximar, para ganhar um pouco de terreno) enquanto durmo; isso se chama sonhar. De tanto em tanto tempo, podem passar semanas e inclusive anos, torno a saber enquanto durmo que ele está vivo e vai morrer; não há nada de extraordinário em sonhar com ele e vê-lo vivo, acontece com tantos outros nos sonhos de todo mundo, também eu às vezes vejo minha avó viva em meus sonhos, ou Alfredo vivo em meus sonhos, Alfredo que foi um dos amigos de Paco e morreu antes dele. Qualquer pessoa sonha com seus mortos e os vê vivos, não é por causa disso que escrevo; se escrevo é porque sei, embora não possa explicar o que sei.
 

lhe, quando sonho com Alfredo a pasta de dentes cumpre muito bem sua tarefa; resta a melancolia, a insistência das recordações antigas, depois começa o dia sem Alfredo. Mas com Paco é como se ele acordasse também comigo, pode dar-se ao luxo de dissolver quase em seguida as vividas seqüências da noite e continuar presente e fora do sonho, desmentindo-o com uma força que Alfredo, que ninguém tem em pleno dia, depois do banho de chuveiro e do jornal. O que lhe importa que eu me lembre apenas do momento em que seu irmão Cláudio veio me buscar para me dizer que Paco estava muito doente, e que as cenas sucessivas já esfiapadas mas ainda rigorosas e coerentes no esquecimento, um pouco como a marca de meu corpo ainda visível nos lençóis, se diluam como todos os sonhos. O que então sei é que ter sonhado não é mais do que parte de alguma coisa diferente, uma espécie de superposição, uma outra zona, se bem que a expressão seja incorreta, mas também é preciso superpor ou violar as palavras se quero aproximar-me, se espero alguma vez estar. Grosseiramente, como o estou sentindo agora, Paco está vivo embora vá morrer, e se alguma coisa sei é que nisso nada há de sobrenatural; tenho minha opinião sobre os fantasmas mas Paco não é um fantasma, Paco é um homem, um homem que foi até há trinta e um anos meu colega de estudos, meu melhor amigo. 


Não foi necessário que voltasse a meu lado uma outra vez, bastou o primeiro sonho para que eu soubesse que ele estava vivo além ou aquém do sonho e outra vez me invadisse a tristeza, como nas noites da calle Rivadavia quando o via ceder terreno ante uma doença que o ia corroendo a partir das vísceras, consumindo-o sem pressa na tortura mais perfeita. A cada noite que volto a sonhá-lo tem sido a mesma coisa, as variações do tema; não é a recorrência que poderia me enganar, o que sei agora já era sabido desde a primeira vez, acho que em Paris na década de cinqüenta, quinze anos depois de sua morte em Buenos Aires. É verdade, naquela época tratei de ser sadio, de escovar melhor os dentes; eu o repeli, Paco, embora alguma coisa dentro de mim já soubesse que você não estava aí como Alfredo, como meus outros mortos; também perante os sonhos se pode ser um canalha e um covarde, e talvez você voltasse por causa disso, não por vingança mas para me provar que era inútil, que você estava vivo e tão doente, que ia morrer, que uma ou outra noite Cláudio viria me procurar em sonhos para chorar no meu ombro, para me dizer Paco está mal, o que podemos fazer, Paco está tão mal. sua cara terrosa e sem sol, sem sequer a lua dos cafés do Once, a vida noturna dos estudantes, um rosto triangular sem sangue, a água azul-clara dos olhos, os lábios descascados pela febre, o cheiro adocicado dos nefríticos, seu sorriso delicado, a voz reduzida ao mínimo, sendo obrigado a respirar entre cada frase, substituindo as palavras por um sinal ou uma careta irônica  


Você vê, é isso o que sei, não é muito mas muda tudo. Aborrecem-me as hipóteses tempo espaciais, as n dimensões, sem falar do jargão ocultista, a vida astral e Gustav Meyrinck. Não vou sair para procurar porque me sinto incapaz de ilusão ou talvez, na melhor das hipóteses, da capacidade de entrar em territórios diferentes. Simplesmente estou aqui e disposto, Paco, escrevendo o que mais uma vez vivemos juntos enquanto eu dormia; se em alguma coisa posso ajudá-lo é em saber que você não é só meu sonho, que aí, mas onde, como, que aí estás vivo e sofrendo. Desse aí não posso dizer nada, a não ser que me acontece sonhando e acordado, que é um aí inescapável; porque quando o vejo estou dormindo e não sei pensar, e quando penso estou acordado mas só posso pensar; imagem ou idéia são sempre aquele aí, mas onde, aquele aí, mas como.
  
reler isto é abaixar a cabeça, xingar de cara contra um novo cigarro, perguntar-se pelo sentido de estar batendo nesta máquina, para quem, me diz só, para quem que não encolha os ombros e arquive rápido, ponha a etiqueta e passe a outra coisa, a outro conto
  

E além disso, Paco, por quê. Vou deixar para o fim mas é o mais duro, é esta rebelião e este asco contra o que acontece a você. Você há de imaginar que não acredito que você esteja no inferno, acharíamos tanta graça se pudéssemos falar nisso. Mas tem de haver um porquê, não é verdade, você mesmo há de se perguntar por que está vivo aí onde está se vai morrer de novo, se outra vez Cláudio precisa vir me buscar, se como há um instante vou subir a escada da calle Rivadavia para encontrá-lo em seu quarto de doente, com aquela cara sem sangue e os olhos como de água, sorrindo-me com lábios desbotados e ressequidos, dando-me uma mão que parece um papelzinho. E sua voz, Paco, aquela voz que conheci no fim, articulando precariamente as poucas palavras de um cumprimento ou uma piada. É evidente que você não está na casa da calle Rivadavia, e que eu em Genebra não subi a escada de sua casa em Buenos Aires, isso é o instrumental do sonho e como sempre ao acordar as imagens se desligam e só fica você deste lado, você que não é um sonho, que esteve me esperando em tantos sonhos mas como quem marca encontro num lugar neutro, numa estação ou num café, o outro instrumental que esquecemos mal começamos a andar


como dizê-lo, como continuar, esfacelar a razão repetindo que não é somente um sonho, que se o vejo em sonhos como a qualquer de meus mortos, ele é outra coisa, está aí, dentro e fora, vivo se bem queo que vejo dele, o que ouço dele: a doença o aperta, fixa-o nesta última aparência que é minha recordação dele há trinta e um anos; assim está agora, assim é


Por que é que você vive se adoeceu outra vez, se vai morrer outra vez? E quando morrer, Paco, o que vai acontecer entre nós dois? Vou saber que você morreu, vou sonhar, já que o sonho é a única zona onde posso vê-lo, que o enterramos de novo? E depois disso, vou deixar de sonhar, saberei que está morto de verdade? Porque já faz muitos anos, Paco, que você está vivo aí onde nos encontramos, mas com uma vida inútil e murcha, desta vez sua doença dura interminavelmente mais que a outra, passam-se semanas ou meses, passa Paris ou Quito ou Genebra e então vem Cláudio e me abraça, Cláudio tão jovem e garoto chorando quieto no meu ombro, avisando-me que você está mal, que suba para vê-lo, às vezes é um café mas quase sempre é preciso subir a escada estreita daquela casa que já puseram abaixo, de um táxi olhei há um ano aquele quarteirão de Rivadavia na altura de Once e soube que a casa já não estava lá ou que a haviam reformado, que faltam a porta e a escada estreita que levava ao primeiro andar, aos quartos de pé-direito alto e de gessos amarelos, passam-se semanas ou meses e de novo sei que tenho de ir vê-lo, ou simplesmente o encontro em qualquer lugar ou sei que está em qualquer lugar embora não o veja, e nada acaba, nada começa nem acaba enquanto durmo ou depois no escritório ou aqui escrevendo, você vivo para quê, você vivo por quê, Paco, aí, mas onde, meu velho, onde e até quando.


apresentar provas de ar, montinhos de cinza como provas, seguranças de vácuo; ainda pior com palavras, desde palavras incapazes de vertigem, etiquetas anteriores à leitura, essa outra etiqueta final



noção de território contíguo, de quarto ao lado; tempo de ao lado; e ao mesmo tempo nada disso, fácil demais refugiar-se no binário; como se tudo dependesse de mim, de um simples código que um gesto ou um salto me dariam, e saber que não, que minha vida me encerra no que sou, na própria margem mas
tratar de dizer de outra maneira, insistir; por esperança, procurando o laboratório da meia-noite, uma alquimia impensável, uma transmutação


Não sirvo para ir mais longe, tentar qualquer dos caminhos que outros seguem à procura de seus mortos, a fé ou os cogumelos ou as metafísicas. Sei que você não está morto, que as mesas de três pés são inúteis; não consultarei videntes porque eles também têm seus códigos, olhariam para mim como um louco. Só posso acreditar naquilo que sei, continuar por minha calçada como você pela sua, diminuído e doente aí onde você está, sem me incomodar, sem me pedir nada mas apoiando-se de alguma forma em mim que sei que você está vivo, nesse elo que o enlaça a essa zona à qual você não pertence mas que o sustenta sei lá por quê, sei lá para quê. E por isso, penso, há momentos em que lhe faço falta e é então que chega Cláudio ou que de repente o encontro no café onde jogávamos bilhar ou no quarto de cima onde púnhamos discos de Ravel e líamos Federico e Rilke, e a alegria deslumbrada que me dá saber que você está vivo é mais forte que a palidez de seu rosto e a fria fraqueza de sua mão; porque em pleno sonho não me engano como me engana às vezes ver Alfredo ou Juan Carlos, a alegria não é essa horrível decepção ao acordar e compreender que se sonhou, com você eu acordo e nada muda senão que deixei de vê-lo, sei que você está vivo aí onde está, numa terra que é esta terra e não uma esfera astral ou um limbo abominável; e a alegria perdura e está aqui enquanto escrevo, e não contradiz a tristeza de tê-lo visto mais uma vez tão mal, ainda é a esperança, Paco, se escrevo é porque espero embora cada vez seja a mesma coisa, a escada que leva a seu quarto, o café onde entre duas carambolas você me dirá que esteve doente mas que já vai passando, mentindo-me com um pobre sorriso; a esperança de que alguma vez seja de outra maneira, que Cláudio não tenha de vir me buscar e chorar abraçado a mim, pedindo-me que vá vê-lo.


embora seja para estar outra vez perto dele quando morrer como naquela noite de outubro, os quatro amigos, a lâmpada fria pendente do teto, a última injeção de coramina, o peito nu e gelado, os olhos abertos que um de nós fechou chorando


 
E você que me lê pensará que é invenção; pouco importa, há muito as pessoas põem à conta de minha imaginação o que realmente vivi, ou vice-versa. Olhe, eu nunca encontrei Paco na cidade da qual me falara uma vez ou outra, uma cidade com que sonho de vez em quando e que é como o recinto de uma morte infinitamente adiada, de procuras turvas e de encontros impossíveis. Nada teria sido mais natural do que vê-lo aí, mas aí não o encontrei jamais nem acredito que o encontre. Ele tem seu próprio território, gato em seu mundo recortado e preciso, a casa da calle Rivadavia, o café do bilhar, alguma esquina do Once. Se o tivesse encontrado na cidade dos arcos e do canal do norte, talvez o somasse à maquinaria das procuras, aos intermináveis quartos do hotel, aos elevadores que se deslocam horizontalmente, ao pesadelo elástico que volta de tempos em tempos; teria sido mais fácil explicar sua presença, imaginá-la parte daquela decoração que ele teria empobrecido limando-a, incorporando-a a suas brincadeiras desajeitadas. Mas Paco está em suas coisas, gato solitário assomando de sua própria zona sem misturas; os que vêm me procurar são só os seus, é Cláudio ou o pai, uma vez ou outra seu irmão mais velho. Quando acordo depois de tê-lo encontrado em sua casa ou no café, vendo-lhe a morte nos olhos como de água, o resto se perde no fragor da vigília, só ele fica comigo enquanto escovo os dentes e ouço o noticiário antes de sair; já não sua imagem percebida com a cruel precisão lenticular do sonho (o terno cinza, a gravata azul, os mocassins pretos), mas a certeza de que impensavelmente continua aí e que sofre.


sequer esperança no absurdo, sabê-lo outra vez feliz, vê-lo num torneio de pelota, apaixonado por essas moças com que dançava no clube pequena larva cinza, anímula vágula blândula, macaquinho tremendo de frio sob os cobertores, estendendo-me uma mão de manequim, para quê, por quê


Não pude fazer com que vivesse isso, escrevo assim mesmo para você que me lê porque é uma maneira de quebrar o cerco, de pedir que você procure em si mesmo se não tem também um desses gatos, desses mortos que amou e que estão nesse aí que já me exaspera mencionar com palavras de papel. Faço-o por Paco, como se isto ou outra coisa qualquer adiantasse alguma coisa, ajudasse-o a curar-se ou a morrer, a fazer com que Cláudio não voltasse para me buscar, ou simplesmente a sentir por fim que tudo era uma ilusão, que só sonho com Paco e que ele sei lá por que se segura um pouco mais aos meus tornozelos do que Alfredo, do que meus outros mortos. É o que você estará pensando, que outra coisa poderia pensar a menos que isso também tenha lhe acontecido com alguém, mas nunca ninguém me falou de coisas assim e também não o espero de você, simplesmente tinha de dizer e esperar, dizer e outra vez me deitar e viver como qualquer um, fazendo o possível para esquecer que Paco continua aí, que nada termina porque amanhã ou no ano que vem eu acordarei sabendo como agora que Paco continua vivo, que me chamou porque esperava alguma coisa de mim, e que não posso ajudá-lo porque está doente, porque está morrendo.


Fontes:

ARRIGUCCI, JR., Davi. O escorpião encalacrado. a poética da destruição em Júlio Cortázar. São Paulo: Copanhia das Letras, 1995.  

CORTÁZAR, Julio. Octaedro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.

*O neofantástico na ficcção breve contemporânea lationamericana, portuguesa e moçambicana: Julio Cortazar, Almeida Faria e Mia Couto. Disponível em :
http://e-archivo.uc3m.es/bitstream/10016/8713/1/neofantastico_LITERATURA_2008.pdf  [Data de consulta : 26 de Julho de 2010].