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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O Dispositivo Grupal da Terapia Familiar

O Dispositivo Grupal da Terapia Familiar



Esse texto pretende pensar as formações grupais familiares como um tecido preexistente à todo psiquismo individual. Destaca portanto, o registro da intersubjetividade para o grupo familiar. Propõe-se também refletir sobre um enquadre de grupo para a família como o dispositivo de trabalho na terapia familiar psicanalítica.

Consideraremos inicialmente que na clínica essencialmente neurótica no atendimento individual, trabalha-se no registro do intrapsíquico, registro formalizado por Freud através do aparelho psíquico, portanto na transferência instalada, analisa-se as relações de objeto que irão se apresentar durante o tratamento.

A terapia das neuroses se baseia na idéia de que esta resulta de conflitos infantis não resolvidos que continuam a se manifestar como sintomas. O sofrimento psíquico é pensado como estando no interior do jogo entre as diferentes instâncias do aparelho psíquico. Ele se traduz nos sintomas que aparecem como formação de compromisso entre o desejo inconsciente e as exigências da realidade e do superego, e o ego adminstrando essa tensão. Porém, o entendimento do sofrimento humano não se resume apena à referência dos conflitos intrapsíquicos.

Os trabalhos de Bleger (1970) já apontavam a existência de formações não integradas ao psiquismo individual que são depositadas nos vínculos e postas em jogo em todo o grupo. Essas formações não integradas ao psiquismo vêm de restos de vínculos simbióticos primitivos não elaborados. Estas formações fazem parte da identidade mas devem permanecer mudas, clivadas para garantirem o funcionamento de formações psíquicas mais elaboradas como as formações do ego. Essas formações não integradas ao psiquismo individual seriam de natureza grupal: elas precederiam e depois sustentariam a individuação psíquica.

René Käes conceituou o aparelho psiquico grupal em 1979, o que ofereceu um suporte téorico-clínico para entender a formação e o funcionamento dos grupos. Os trabalhos de Käes sobre os grupos e as pesquisas de terapeutas de família na década de 80 expandiram as hipóteses sobre o funcionamento do aparelho psíquico familiar apresentado inicialmente por Ruffiot (1979).

Ruffiot (1979) formula a hipótese de um Aparelho Psíquico Familiar preexistente, genética e estruturalmente à organização do aparelho psíquico individual “ se é tecido antes de ser nascido” .

Nos casos de funcionamento neurótico prevalecente em um indivíduo, estas formações grupais tornaram-se suficientemente mudas para que o trabalho psíquico efetuado na terapia individual dirija-se às formações intrapsíquicas e aos conteúdos recalcados. Nos casos de funcionamentos psicóticos, anoréxicos, psicossomáticos e psicopáticos parecem mais predominantes a deficiência das estruturas do ego e de continentes do psiquismo.

Na escola francesa, a terapia familiar diriga-se particularmente para esses últimos funcionamentos e se interessa pelas condições que tornam possível o processo de subjetivação. A terapia familar psicanalítica , propondo um enquadre de grupo para a família, instaura condições de um espaço no qual irão se manifestar as formações psíquicas diferentes das observadas e tratadas no enquadre dual.

As formações grupais familiares serão vistas deste ponto de vista: o tecido grupal que precede ou preexiste a todo psiquismo individual e depois continua servir de sustentação. É a dimensão grupal deste aparelho psíquico familiar que será levado em conta.



O Aparelho Psíquico Familiar



O Aparelho Psíquico Familiar poderia ser definido como uma aprendizagem comum e partilhada pelos membros de uma família cuja função é de articular o funcionamento do “estar junto familiar” com os funcionamentos psíquicos individuais de cada um dos membros. Funciona como uma matriz de sentido, que serve de invólucro e sustentáculos primários para as psiques dos indivíduos dessa família.



Funções do Aparelho Psíquico Familiar



O aparelho psíquico familiar tem funções de continência, de ligação, de transformação e de transmissão para qualquer indivíduo. A função de continência abarcaria as angústias arcaicas correspondentes à função de pára-excitação, sustentáculo de elementos simbióticos que são necessários no periódo de desenvolvimento da criança.. A função de ligação se refere ao intrapsíquico e ao intersubjetivo, correspondendo ao processo progressivo no qual o recém-nascido poderá utulizar as vivências psíquicas , para no futuro, poder organizar sua psique e estabelecer relações objetais . A função de transformação tem como princípio acolher as experiências sensoriais do bebê através do holding, do meio ambiente. A função de transmissão na sucessão das gerações ou outrora denominado na sua dimensão intragrupal refere-se a maneira pela qual cada família irá dar à criança as chaves de acesso ao mundo.

Assim, o indivíduo não pode construir completamente a sua história: ele se ancora em uma história familiar que o precede da qual vai extrair a substância das suas fundações narcísicas e tomar um lugar de sujeito. Discutir, portanto a transmissão psíquica entre as gerações implica uma dualidade, se por um lado está atrelado à noção de continuidade, por outro, aponta para uma dimensão patológica na medida em que o indivíduo fica preso a uma pré-determinação ancestral, sem possibilidades criativas.

A importância do desejo parental na organização do psiquismo dos filhos teve variadas formulações teóricas que permitem pensar uma terapia familiar propriamente psicanalítica levando o interesse da transimissão psíquica transgeracional.

Cabe analisarmos, sob o ponto de vista teórico, a distinção conceitual entre transmissão psíquica intergeracional e transgeracional.

A herança intergeracional comporta elementos que são representados e não são de natureza traumática, logo é possível uma transmissão não patológica, seria portanto o aspecto saudável, onde existiria a possiblidade de um trabalho de ligação e de transformação, permitindo que o indivíduo se vincule a um grupo e esse grupo a um outro e assim sucessivamente. Em contrapartida, a transmissão psíquica transgeracional é a que possui os aspectos traumáticos e patológicos, que não permite transformações.

O tema da transgeracionalidade traz consigo a noção de transmissão do negativo, o “pacto do negativo”. Käes (1979) analisa o lugar do negativo que em qualquer vínculo, quer se trate de um casal, de um grupo, de uma família ou de uma instituição tem a sua função defensiva e estruturante. Para esse autor o pacto denegativo seria uma formação intemediária que conduz ao recalque, à recusa ou à reprovação de qualquer representação que pudesse questionar a formação desse vínculo e os investimentos de que é objeto. Estes negativos, aspectos não elaborados pela psique podem ser objeto de um pacto, de um contrato ou de uma aliança inconsciente entre os sujeitos do vínculo. No pacto denegativo o grupo organiza-se positivamente através dos investimentos e identificações comuns assim como organiza-se negativamente, na medida em que o “estar junto” exige renúncias e sacrifícios.

Nesse sentido, Kães (1989) fala das “alianças inconscientes” que, por estarem inscritas no processo de recalque e por visarem a preservação do vínculo, organizam e criam os vínculos na medida em que esta dimensão da aliança, implica em uma obrigação e um assujeitamento através de mútuas obrigações, ou seja , a criança que nasce é obrigada a encarregar-se das alianças inconscientes sobre os quais se fundamenta o encontro entre seus pais e suas descendências circunscritos pelos seus contratos narcísicos e pactos de negação. 

Segundo Motta (2008), Käes toma como referência o que foi pontuado sobre o contrato narcísico por Castoriadis-Aulagnier (1975). O contrato narcísico carrega o sentido e a missão de cada sujeito inseridos na sucessão de gerações e no conjunto social, assim cada sujeito recebe um lugar determinado con conjunto ao qual pertence e uma missão, a saber, a de assegurar a continuidade da geração e do conjunto social. Käes discrimina o contrato narcísico em dois tipos, segundo suas formas. O primeiro tipo insere-se no grupo primário através dos investimentos do narcisismo primário. O segundo contrato narcísico situa-se nos grupos secundários, nas relações de complementaridade e de oposição. Qualquer mudança do sujeito em relação ao grupo coloca em questão os percalços do contrato.

Quando o tipo de transmissão envolve um saber da ordem do negativo, cujo conteúdo é negado, ele tenta vir à tona na forma de sintoma. Deste modo, o sintoma pode ser entendido como a expressão do sofrimento familiar. Cada indivíduo é submetido a uma dupla destinação e a família tem a necessidade de integrar a vinda desse novo elemento. Às vezes a integração só pode ser mantida às custas do processo de individuação dessa nova criança.

A mãe representa a família, é o porta-voz do grupo familiar que irá conceder o lugar para a nova criança. O nascimento é traumático para a família pois o bebê é familiar e estranho ao mesmo tempo, tem que ser incorporado pelo grupo e instalado em um cadeia. A criança é a aliança entre os pais: contrato narcísico dos pais, herdeira e prisioneira. O sofrimento familiar seria a manifestação de uma falta de metabolização, transmitida na geração que mantém um excesso de angústia . As vezes o equilíbrio é mantido por uma clivagem do sofrimento projetada sobre um membro da família, o porta-voz desse sofrimento.



O Dispositivo da Terapia Familiar



O objetivo da terapia familiar seria permitir a retomada de um funcionamento no qual a família possa se organizar, no registro da representação, o que tenha ficado fora desse registro. Melhorar a circulação de elementos representativos, restabelecer a capacidade de pensar do grupo familiar e não apenas com as fantasias individuais que possam surgir. Esta capacidade de pensar a que nos referimos aproxima-se do desenvolvimento que Bion deu à noção de identificação projetiva, considerando-a como sendo o primeiro meio de comunicação da criança, fazendo dela o ponto de partida da atividade de pensar e de elaborar a angústia. Assim nesse sentido, a família também busca ser contida e experimentar pensar em um espaço terapêutico seguro.

O enquadre configura-se como sessões semanais de uma hora e meia de duração com todos os membros da familia, o tempo é limitado e os encontros coordenados por dois terapeutas, são consideradas a escuta grupal e a associatividade deste tipo de terapia.

Escutar grupalmente uma família é receber os diferentes níveis de expressão, contê-los e fazê-los manter-se juntos e investidos com os objetos possíveis de sentido. É um funcionamento mais arcaico e tudo o que é produzido ou dito é considerado como vindo do conjunto familiar.



A associatividade em terapia familiar:



Segundo Eiguer (1995) embora a comunicação verbal do ponto de vista da observação seja o que mais interessa ao terapeuta e a interpretação se constitua a ferramenta por excelência, pensando no desenvolvimento da atividade fantasmática e portanto da associatividade em terapia familiar, há de se ter muito cuidado em não incorrer no erro de usar técnicas comportamentais ou indutivas, pois não se trata de posicionar-se pedagógicamente. Portanto, ainda segundo este autor, as técnicas mobilizadores em terapia familiar tentam criar um movimento, mas não são, obviamente, uma meta em si. Considerando-se maturidades diferentes e comunicações diferentess, tem por objetivo uma tomada de consciência mais dinâmica dos vínculos familiares.

Eiguer sinaliza que as técnicas mobilizadores podem ser propostas no início da terapia ou mais tarde. Quando a técnica é proposta no início, um dos princípios é que tanto a regra da livre associação quanto a introdução dessas técnicas devem ser enunciadas na forma de um convite para associar sem crítica nem pressão. Quando a técnica é proposta no decorrer do processo, deverá se expor as razões da inovação. São várias as modalidades dentre eles, podemos pensar em psicodrama de inspiração psicanalítica, jogos imaginativos, o jogo, o genograma familiar, desenhos e outros meios gráficos como pintura ou massa de modelagem.

Cabe salientar que dentre essas várias modalidades traduzem uma experiência e não um sentido lógico, a transferência e a contratransferência é maciça e exige elaboração posterior. Destacamos os jogos imaginativos, e o desenho quando pensamos sobre as técnicas.

Os jogos imaginativos, segundo Eiguer (1995) colocam-se no meio caminho do psicodrama e da interpretação associativa. O terapeuta neste caso sugere que situações sejam imaginadas, por exemplo, a partir de um relato ou de uma queixa e atraves desses estímulos pede-se que se façam associações, falem sobre as impressões, pensem em reações.

O jogo, tal como praticado em terapia grupal familiar é um jogo no qual os adultos participam, nestes casos pode-se analisar as capacidades identificatórias dos adultos diante do lúdico das crianças e de sua plasticidade metafórica.

No desenho o que se evidencia é o processo de regressão, nesse sentido, certamente o enquadre é facilitador da expressão dos conteúdos psíquicos em ressonância grupal, dessa forma, todos os adultos e crianças são convidados a desenhar, o que acontece é que os adultos mostram-se mais reticentes pois temem ser considerados infantis. Uma forma de favorecer a integração na atividade e do grupo ocorre quando a folha é dividida e cada un fica com um pedaço para desenhar, muitas vezes este recurso simples, desencadeia atividades fantasmáticas particularmente ricas.



Conclusão



Se Freud deu à sua metapsicologia um estatuto intrapsíquico destacamos neste texto a intersubjetividade como fundamento da transferência familiar a partir do enunciado da preexistência de um psiquismo grupal à psique individual. O suporte teórico-clínico dado por autores contemporaneos como Käes e Ruffiot a partir das suas contribuições do entendimento do grupo e da família com os conceitos de Aparelho Psíquico Grupal e Aparelho Psíquico Familiar respectivamente nos possibilita pensar o enquadre grupal para a família, o que implica, como vimos, em uma escuta grupal e na pertinência da associatividade como mediação para o desenvolvimento das diversas tramas fantasmáticas.

Tratou-se portanto de contemplar a especificidade de um enquadre grupal para a família. Salienta-se que só nos últimos anos na França tem-se experimentado um movimento de estudo familiar especificamente analítico, sobretudo a partir das pesquisas de Ruffiot. Tentamos neste texto esboçar alguns postulados técnicos desse movimento a fim de introduzir o Dispostivo da Terapia Familiar.





Referências bibliográficas:



BLEGER, José. (1970). O Grupo como Instituição e o Grupo nas Instituições. In: Kaes, R. et. al. A instituição e as instituições.Casa do Psicólogo: São Paulo, 2001.

EIGUER, A. O parentesco fantasmático: transferência e contratransferência em terapia familiar psicanalítica. São Paulo: Caso do Psicólogo, 1995.

KÄES et al. A Instituição e as Instituições: estudos psicanalíticos. São Paulo: Casa do Psicólogo;1989.

KÄES, R.. O Grupo e o Sujeito do Grupo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

MOTTA, I.F.; Rosa, J. T. Violência e sofrimento de crianças e adolescentes na perspectiva winnicottiana. São Paulo: Idéias e Letras, 2008.

RUFFIOT, A., 1979. La Thérapie Psychanalytique de la Famille. L`Appareil Psychique Familial, Tese do terceiro ciclo, Grenoble II.





Gislaine Varela Mayo De Dominicis Psicologa,psicanalista, profª do Curso de Psicoterapia Breve Piscanalítica no Instituto Sedes Sapientiae e coordenadora do” Projeto de grupos e grupos familiares em Psicoterapia Breve”na clínica do Sedes Sapientiae

Karein Castro Reglero Psicologa, especialista em Psicoterapia Breve Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae e participante do “ Projeto de grupos e grupos familiares em Psicoterapia Breve “ na clínica do Instituto Sedes Sapientiae



São Paulo, junho de 2009