Este blog dedica-se a exercitar "escuta" sensível às manifestações artísticas, criações e ilusões humanas.

sábado, 5 de junho de 2010

O pulo do gato na esteira de Bergman

Propõe-se refletir  sobre "a sexualidade precoce" na relação mãe-filha a partir do filme Sonata de Outono de Ingmar Bergman.

Sonata de Outono é um filme visceral da filmografia de Bergman por colocar em evidência de maneira catártica os processos inconscientes de uma conturbada relação mãe-filha.

Cada menina tem um destino conforme a ligação com a mãe, Freud interroga a feminilidade reservando um destino muito peculiar, ao estrato pré-edipiano, à relação mãe-filha. É nesta pré-historia edipiana das meninas que encontramos a sedução e a mãe como sedutora, uma vez que há exclusividade de ligação com a mãe e neglicência total do pai enquanto objeto de amor.

Uma pianista de renome internacional (Ingrid Bergman) visita a filha (Liv Ullmann) timida e deprimida. Casada com um pastor, uma pessoa gentil, ambos vivem numa casa situada próxima da igreja, levando uma vida calma. Tiveram um filho que faleceu prematuramente, aos seis anos de idade. Liv conta para a mãe que Erik, o filho, a visita de quando em quando, que ela pode sentir as carícias leves que ele lhe faz. A mãe tenta convencê-la a que ela e o marido tenham um novo filho ou adotem uma criança. A filha toca piano assim como a mãe, ela costumava dar-lhe lições. Há um contentamento sincero em relação ao encontro e muitas expectativas. No decorrer  do filme este contentamento, devido a proximidade e  as marcas das  lembranças do passado, vai aos poucos revelando uma relação repleta de resssentimentos, mágoas e cobranças.



Uma das cenas mais marcantes do filme é a cena na qual a filha toca para a mãe. Esta a ouve, mas depois interpreta a mesma composição para que a filha compreenda como ela deve ser tocada. Aqui, na esteira da fala do próprio diretor, a mãe, sem tencionar, destrói toda a satisfação da filha.

Esta cena mostra muito claramente a crença no aspecto fálico e onipotente da mãe que a menina precisa renunciar para ter acesso a sua feminilidade, aqui vemos que a fantasia de sedução que concerne ao pai é bem distinta. Uma vez que a menina descobre que a mãe não é onipotente, a menina aos poucos consegue desvencilhar-se desta sedução, tornando possível então abandoná-la como objeto de amor. No filme esta passagem se verá mais adiante, neste cena a filha ainda está presa a falicidade da mãe.

Mais adiante com a insônia da mãe e no encontro das duas no living no meio da noite, “as máscaras “ de ambas vão então cair. Aqui pela primeira vez a filha se atreve a falar abertamente sobre os seus sentimentos e ressentimentos, o que abala profundamente a mãe, que nunca imaginou que a filha tivesse tanto ódio e desprezo por ela. Depois a mãe fala do seu tédio, do seu desespero, da sua solidão, confessa nunca se sentir capaz de ser mãe, o que ansiava era por uma mãe e não uma filha. No filme, o ódio da filha se cimentou, nem uma nem outra conseguem perdoar. O perdão talvez apareça na pessoa da segunda filha, a doente internada na casa sob os cuidados do casal.

Segundo Bergman, o primeiro esboço deste filme estava ligado ao caso de sonegação de imposto de que era  acusado e que originou seu internamento numa clínica psiquiátrica até ir à uma clínica até poder voltar para a sua casa de Färö.

Bergman em seu livro Imagens : “Noite seguinte a ter sido absolvido. Não consigo dormir, apesar dos soníferos que tomo. Entretanto, nasce em mim o desejo de fazer um filme sobre o tema relações entre mãe e filha e vice-versa, papéis para os quais tenho impreterivelmente de ter Ingrid Bergman e Liv Ullmann. Talvez haja lugar para uma terceira pessoa”.

Chama a atenção este desejo de fazer um filme sobre o tema relações entre mãe e filha num momento em que estava se deparando com a “Lei”. Mais adiante:

Há qualquer coisa de enigmático na frase que escrevi, em que digo que a ' filha dá à luz a mãe' . Ela contém uma percepção que não tive forças para levar a cabo. À primeira vista o filme dá a impressão de ser apenas um esboço, mas não é.

Quando aprofundo um tema, ou se parte a verruma ou eu não me atrevo a ir mais a fundo. Talvez me faltem as forças para isso, ou talvez não compreenda que esse aprofundamento tem de ir mais longe. Tiro então a verruma sem dar o passo vertiginoso, decisivo. Tiro a verruma e me sinto satisfeito. Ora, isto é um sintoma de cansaço criativo, um sinal que é perigoso pois nos faz sentir dor nenhuma."

A sexualidade precoce feminina nos conduz a uma lógica de “desfecho” do édipo feminino a partir de uma operação de descentramento com referência às representações envolvidas na primeira ligação com a mãe, o salto se opera quando estas representações são substituídas por outros representantes fálicos masculinos. Se isto não ocorre, a sexualidade precoce compromete a relação da mulher com a castração e com a lei. É este “passo vertiginoso e decisivo” - tomando de empréstimo as palavras de Bergman – que possibilitaria, via esquecimento, a castração simbólica da mulher, o que significaria uma "reconciliação com a lei" que neste contexto seria,  se me permitem pensar, uma reinvenção do  "melodramático" .  


Bergman, Ingmar. Imagens. São Paulo: Martins Fontes, 1996.  

Um comentário:

Anônimo disse...

Assisti ao filme e pude perceber em algumas cenas o quanto deixamos refletir o espelho de nossas mães, e se não tirarmos a viseira vivemos a sua manipulação. Esse filme me fez enxergar muitas coisas. Gostei muito da sua percepção.