Parece que o termo kakfiano representaria um processo através do qual ocorre uma despersonalização ou burocratização do ser nas sociedades totalitárias e as ditas democráticas devido a uma concentração progressiva do poder tendendo a se divinizar. Alguns critérios são necessários para que um fenômeno seja caracterizado como kakfiano:
a) confronto com um poder que tem o caráter de labirinto a perder de vista, uma vez que a instituição em Kafka tem um mecanismo peculiar que obedece as suas próprias leis;
b) no universo kakfiano, o dossiê parece como idéia platônica, ele representa a verdadeira realidade enquanto que a existência física é reflexo projetado;
c) em todo lugar em que ocorre o endeusamento do poder se produz automaticamente o fenômeno pseudo-teológico;
d)no universo kakfiano, o castigo procura a falta.
Se em Crime e Castigo, Raskolnikov não consegue suportar o peso da culpabilidade e consente voluntariamente a punição, no Processo, o agrimensor K. não suporta o absurdo de um castigo sem causa, para encontrar a paz, procura a falta. Neste mundo pseudoteológico, o castigado suplica que o reconheçam culpado.
e)no mundo kakfiano, o cômico não representa complemento para aliviar a tragicidade para torná-lo mais leve ao contrário, o destrói, o engenheiro perde a sua pátria e todo o auditório ri.
Em um ponto do ensaio o autor sinaliza que os mecanismos psicológicos que funcionam no interior dos grandes acontecimentos históricos são os mesmos que regem as stiuações íntimas. A famosa carta que Kafka escreveu e nunca mandou a seu pai demostra, segundo Kundera, de onde ele tirou o seu conhecimento da técnica de culpabilização que se tornou tema de seus romances e alguns do seus contos.
A trama do segredo tanto nas sociedades totalitárias quanto nas relações que se estabelecem entre as crianças e o poder endeusado dos pais não passa desapercebido. Tanto uma quanto a outra tentam abolir a fronteira entre o público e o privado. O poder que se torna mais opaco exige cada vez mais transparência na vida dos seus cidadãos do mesmo modo que uma criança não tem direito ao segredo diante do seu pai e de sua mãe.
O agrimensor K. não quer ser aceito pelos seus pares mas por uma instituição e para alcançar isso, ele deve renunciar a sua solidão. A solidão violada é, segundo Kundera, a obsessão de Kafka. A história de Joseph K. começa pela violação da intimidade, dois desconhecidos vêm prendê-lo na cama.
A partir do exposto pretendemos articular a "técnica de culpabilização" no universo kakfiano com os questionamentos da autora Miller (*) sobre a Pedagogia Blanca para refletir sobre o tema transversal da violação da intimidade.
Miller tem o intuito de sensibilizar o público dos sofrimentos da primeira infância. Na primeira parte do livro dedica-se à descrição da "Pedagogia Negra”, ou seja, dos métodos educativos coercitivos. Na segunda parte descreve a infância de Christiane F., Jurguen Bartsch e Adolf Hitler como paradigmas do "aniquilamento da alma infantil", ainda problematiza, entre outros temas, a "Pedagogia Blanca" e as implicações do "Falso Yo" dos pais no desenvolvimento dos filhos. Neste sentido, a autora faz uma leitura possível do suicídio da poeta Sylvia Plath.
A sua linha de trabalho baseia-se em uma definição da primeira infância distinta do modelo pulsional da psicanálise, aponta a necessidade de estabelecer uma distinção clara entre o sentimento de culpa e o luto.
A sua postura antipedagógica não se dirige contra uma forma particular de educação mas contra a educação como um todo, inclusive a antiautoritária. Enfatiza a importância do ambiente e a determinação do inconsciente das pessoas que cuidam da criança como etiologia de patologias na medida em que exercem uma influência essencial no desenvolvimento da criança.
O ponto que nos interessa é a sua tese antipedagógica, ressalta que muito provavelmente as pessoas que cresceram dentro de um sistema de valores baseados nos dogmas da “Pegagogia Negra”, caso não tenham tido experiências psicanalíticas de nenhum tipo, não verão com bons olhos a sua postura, vista inclusive, segundo ela, com certo desdén uma vez que é tida como uma postura ingênua otimista.
Acredita ser a pedagogia de Rousseau manipuladora no sentido mais profundo do termo. Miller baseia-se no estudo que Ekkehard von Braunmuhl fez do livro Emilio, vejamos um parágrafo que sintetiza bem a idéia do romance : "Seguid el camino opuesto con vuestro educando. Hacedle creer siempre que él es el maestro, pero en realidad sedlo vosotros. No hay sumisión más perfecta que la que conserva las apariencias de liberdad. De este modo se somete incluso la voluntad. Ese pobre niño que nada sabe, nada puede y nada conoce no está totalmente a vuestra merced?" O livro de Rousseau é um ensaio pedagógico sob a forma de romance que pretende fazer da criança um adulto bom.
O fato de considerar a educação perniciosa não quer dizer que a criança deva crescer sem tutela, o que a criança necessitaria para se desenvolver, segundo ela, é respeito, tolerância em relação aos seus sentimentos, sensibilidade para entender suas necessidades e autenticidade dos pais cuja liberdade colocaria as fronteiras naturais para a criança.
Miller defende a necessidade de democratizar o acesso ao conhecimiento, a partir de situações que se produzem fora do âmbito psicanalítico - na pluralidade da vida - mas que possam ser compreendidas com profundidade de uma perspectiva psicanalítica.
continua
(*) Miller, Alice. Por tu proprio bien: Raíces de la violencia en la educación del niño. Traducción de Juan del Solar. 4 ed.: Colección Ensayo: marzo de 2009.
Um comentário:
Parabéns! Além do ótimo texto, você fez uma bela análise. Gostei muito do seu blog. Ele tem tudo a ver com você. Sucesso!
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